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Viagem Semiótica: The Sound (BG-29)1

Impresso em litografia e medindo aproximadamente 34x62cm, o pôster para o evento chamado Winterland, produzido por Bill Graham em setembro de 1966, é considerado por muitos autores, Lemke (1999) e Owen e Dickson (1999) entre eles, como um dos mais representativos do período. E combina alguns dos aspectos inconfundíveis tanto do estilo de Wilson quanto do movimento em si: a capacidade de preencher todo o espaço disponível com letras fluidas e cores vibrantes e a admiração do autor pela forma feminina. Sobre a criação do pôster Wilson conta:

Bill veio com a frase "The Sound" [O Som], que era uma referência ao momento das bandas de São Francisco. Ele queria me assistir trabalhando em um pôster, só para ver a minha técnica e como eu criava. Então eu liguei para ele tarde da noite depois que eu tive a ideia e ele veio imediatamente com Bonnie [MacLean, esposa de Graham]... Eu não tinha certeza de como eles iriam reagir, mas eu sabia que Bill faria algum comentário, porque ele sempre fazia. Ele só olhou para o pôster, olhou para mim e disse: 'Bem, isso é bom, mas eu não consigo ler'. E eu disse: 'Sim, e é por isso que as pessoas vão parar e olhar para ele' (WILSON apud LEMKE, 1999, p. 50).

Esse era um dos princípios do estilo de Wilson, seus pôsteres "não comunicavam a mensagem de forma evidente, mas demandavam estudo e paciência do interlocutor para decifrá-la. Para ele, tão importante quanto a mensagem era a atração ao culto que representava os elementos gráficos" (STRAUB; GRUNER, 2009, p. 24).


The Sound (BG-29), Wes Wilson, 1966.
The Sound (BG-29), Wes Wilson, 1966.
Fonte: GRUSHKIN, 1987, p. 79.

Sem dúvida um dos fatores que dificultavam a leitura do pôster era o lettering; desenhado à mão, não seguindo um padrão ou família, ocupando organicamente os espaços e tão distorcido que a informação só é compreendida depois de um tempo analisando o texto. As letras usadas nesse pôster, e em vários outros, são apropriadas como pastiche2 de Alfred Roller.

Pôster para a décima-sexta mostra da Secessão Vienense, Alfred Roller, 1902.
Pôster para a décima-sexta mostra da Secessão Vienense, Alfred Roller, 1902.
Fonte: MEGGS, 2009, p. 296.

Heller e Vienne (2013) consideram que o pastiche histórico é útil para transmitir códigos específicos e provocar uma resposta do observador, já que oferece códigos familiares facilmente reconhecíveis. "Eles são projetados para criar algum substituto que alimente a nostalgia popular, frequentemente muito antes de seu público-alvo ter nascido, sugerindo um efeito primordial evocado pela característica força do pastiche" (HELLER; VIENNE, 2013, p. 16).

O efeito pretendido aqui, além do impacto visual, é a ligação com art nouveau, que por sua vez fazia referência ao movimento arts & crafts, que defendia alternativas à estética da mecanização e da produção em massa, ideais muito próximos a alguns dos defendidos pela contracultura. Por outro lado, as letras também são indício do espírito libertário que, ao mesmo tempo em que são uma representação do espírito livre dos hippies, representam uma libertação dos dogmas do design gráfico modernista. O uso dessas características nas formas das letras

propunha-se a substituição da regra pela atitude, o que, embora pareça e seja também político, é rigorosamente gráfico. A substituição da tipografia pelo desenho é, a um só tempo, expressão cultural e individual. [...] O autor gera sinais (palavras) que, mesmo funcionando semanticamente, são visualmente auto-significantes (como grafismos), sempre símbolos de um tempo e uma atitude (PERRONE, 2003, p. 10-11).

Essa concepção vai ao encontro de Barthes (1990), que diz que o uso dessas "letras-imagens" mostra que a palavra não é o único argumento, o único resultado das letras. As letras e suas mais variadas formas são uma cadeia significante que não toma o caminho que parece levar a letra à palavra, ou seja, esse caminho não é o da comunicação, mas o "da significância: a aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem" (BARTHES, 1990, p. 94). Assim, a letra liberada de sua função linguística (fazer parte de uma palavra) sucumbe ao símbolo, no caso de Wilson são símbolos da liberdade, mas também da alucinação e distorção da realidade provocada pela droga.

Outra referência às drogas está no uso das cores que, como já citado, eram escolhidas a partir da experiência visual com LSD – por terem o único propósito de simular as ilusões e efeitos ópticos proporcionados pela droga, não cabe aqui a discussão do significado cultural das cores. Para chegar a esse resultado os artistas costumavam usar uma combinação de cores definidas através do contraste simultâneo, ou seja, quando se usa duas cores complementares - contrastantes, distantes no círculo cromático -, normalmente uma sendo primária. No pôster de Wilson essa interação acontece entre o magenta, do contorno da figura e das palavras "The Sound", e o verde do fundo e também entre o alaranjado do texto e o fundo.

Porém, o elemento de maior destaque no pôster é a imagem da mulher curvilínea e nua, um tema recorrente e um dos melhores exemplos do trabalho de Wilson, além de uma de suas contribuições mais duradouras para a arte do pôster dos anos sessenta. Esse arquétipo feminino já era usado pelo litógrafo Jules Chéret em anúncio no final do século XIX. "Retratadas com gestos expressivos e com a parte superior do corpo relaxada, as garotas demonstravam o tipo de autoconfiança que logo se tornaria associada com a liberdade das mulheres" (HELLER; VIENNE, 2013, p. 26).


Pôster para o cabaré parisiense Folies-Bergère, Jules Cheret, 1892.
Pôster para o cabaré parisiense Folies-Bergère, Jules Cheret, 1892.
Fonte: HELLER; VIENNE, 2013, p. 27.

Na obra de Wilson, o uso da forma feminina está ligado à sensualidade e à liberdade sexual, aspectos importantes da cultura hippie, mas, sobretudo, "ela representa algumas das melhores coisas sobre a nossa cultura, a aceitação amorosa e maternal, o espírito da terra. Isso é o que eu vejo na figura feminina", explica o autor3.

Como salienta o biógrafo de Wilson, Michael Erlewine4, mesmo que nuas, o tratamento que o artista dá às mulheres e a forma feminina não é deliberadamente erótico, seus nus nunca eram pornográficos. Em vez disso, fica clara sua admiração e apreço pela forma feminina e tudo o que ela representa.

Essa forma, para Perrone (2003, p. 14), em tempos de revolução sexual, está na berlinda, "mas não se trata do corpo esculpido, mecanicamente construído para ser visto [...]. Trata-se do comportamento do corpo em orgasmo e repouso, de um corpo fisicamente livre que seria pré-requisito a uma psique, alma ou espírito também liberto". Na representação em questão, a mulher parece imponente, sexy, livre, feliz e confiante. Sua expressão calma e as mãos para cima, apontando ou segurando o título do pôster (o texto mais legível do pôster), remetem à libertação através da dança e da música, do som.


Mulher dança em Woodstock, 1969.
Mulher dança em Woodstock, 1969.
Disponível em: <http://tudoretro.com/paz-amor-liberdade-woodstock-1969/>. Acesso em 17 ago. 2014.

A união dos elementos gráficos construtivos do pôster, por fim, reforça a característica que nem sempre a peça tem relação com o evento ou a banda, mas a mensagem denotada está ligada, nesse caso, a toda a ideologia por trás do movimento contracultural e, ao contrário do que pregavam os princípios do design modernista, era uma expressão gráfica carregada de subjetividades e de referências pessoais do autor.


Leia também: Viagem Semiótica: Skull and Roses (FD-26), Mouse & Kelly .
Leia também: Viagem Semiótica: Flying Eyeball (BG-105), Rick Griffin .
Leia também: Viagem Semiótica: Neon Rose #2 (NR-2), Victor Moscoso.

Rafael Hoffmann (Setembro/2014)
Esse texto é parte da dissertação "Música Colorida: Uma viagem cultural e estética pelo movimento psicodélico de São Francisco e seus reflexos na linguagem gráfica dos pôsteres de shows entre 1965 e 1696".


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Notas


1 Os pôsteres produzidos para eventos da Family Dog no Avalon Ballroom ganhavam um registro numerado, do tipo FD1 (Family Dog 1), porém muitos ficavam conhecidos não só pelos números de identificação, mas também por "apelidos" como por exemplo "Skull and Roses" (FD 26), "Girl With Green Hair" (FD 29), "Sin Dance" (FD 6). Pôsteres para eventos que não aconteciam no Avalon geralmente eram classificados como "Family Dog Unnumbered Series". Os produzidos por Bill Graham também seguiam esse padrão e eram identificados com o código BG-1, por exemplo (OWEN; DICKSON, 1999).
2 Obra literária ou artística em que se imita abertamente o estilo de outros escritores, pintores, músicos, etc.
3 Disponível em <http://www.collectorsweekly.com/articles/psychedelic-poster-pioneer-wes-wilson/>. Acesso em 17 ago. 2014.
4 Disponível em <http://www.wes-wilson.com/a-brief-biography-by-michael-erlewine.html>. Acesso em 17 ago. 2014.
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Referências


BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
GRUSKHIN, Paul D.. The Art of Rock: Posters from Presley to Punk. New York: Cross River Press, 1987.
HELLER, Steven; VIENNE, Véronique. 100 idéias que mudaram o design gráfico. São Paulo: Rosari, 2013.
LEMKE, Gayle. The Art of the Fillmore 1966-1971. Petaluma: Acid Test Production, 1999.
MEGGS, Philip. História do design gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
OWEN, Ted; DICKSON, Denise. High Art: A History of the Psychedelic Poster. London: Sanctuary Publishing Limited, 1999.
PERRONE, Carlos. Psicodélicas: Um tipo muito louco. São Paulo: Rosari, 2003.
STRAUB, Ericson; GRUNER, Clóvis. Woodstock: O sonho que virou estilo. abcDesign, Curitiba, n. 30, p.22-27, dez. 2009.



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